quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Do erótico ao pornográfico. A criação está em risco?

Prova de Sociologia no Ensino Médio regular em uma escola da rede pública de São Paulo. Legião Urbana servia de provocação: "Geração Coca Cola", de Renato Russo e Fê Lemos.
"Quando nascemos fomos programados", dizia a canção, "a receber o que vocês nos empurraram com os enlatados dos USA, das 9 às 6. Desde pequenos nós comemos lixo comercial e industrial".
"Professor", me perguntou espantado um aluno, "que negócio é esse de comer lixo?".
"Cara", pensei eu, "como ele pode ler ao pé da letra a canção?".

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Aqui entre nós: teria sido mais fácil se a gente tivesse nascido mais forte. Ou mais rápido. Mais ágil! Teria sido mais fácil se tivéssemos garras ou presas. Ou se nossa visão, olfato, audição fossem capazes de perceber coisas a quilômetros de distâncias.
Mas, não! A gente nasceu assim, cheio de deficiências. Nem pelo pra proteger do frio a gente recebeu da natureza... Só essa camada fina de pele para embalar músculos e ossos, artérias, veias e nervos.
Dá pra acreditar que a gente chegou até aqui, depois de milhares de anos vivendo sobre a Terra? O que é que a pessoa humana tem em si que permitiu a sobrevivência da espécie e sua adaptação aos ambientes mais hostis?
Nenhum outro ser vivo tem a capacidade que o ser humano tem de criar símbolos. Nenhum, como ele, é capaz de representar a realidade que percebe através de sons, imagens, pensamento. Pelo símbolo que cria, o ser humano faz do obstáculo trampolim: ele acessa, manipula e até recria a realidade. Pouco a pouco foi criando ferramentas e máquinas que compensaram o que a natureza não lhe deu.

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Li numa revista de cinema, anos atrás, que Ridley Scott passou um bom tempo pensando como produzir e inserir no cenário o monstro de "Alien: o oitavo passageiro" (1979). Clássico da ficção científica de terror, foi produzido numa época em que a computação gráfica ainda engatinhava e não era opção economicamente viável. O diretor, então, optou por mostrar de forma muito rápida apenas detalhes do monstro. Decisão acertada. Impossível não se assustar com o alien, cuja forma final estava apenas em nossa imaginação, povoada por nossos próprios pesadelos e assombrações.
O que abre possibilidades, também pode colocar algemas. A escrita permitiu o registro, a disseminação e a perpetuação da tradição oral, mas criou gramáticas e dicionários e a disputa pelo poder de determinar a interpretação correta.

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No princípio, era o verbo; hoje, a imagem, cuidadosamente elaborada.
No ensaio "O mito do super homem", Umberto Eco analisa a atuação da indústria cultural e mostra como ela desestimula o pensamento criativo e crítico. "Não se preocupe", diz a indústria cultural, "a gente pensa e decide por você. Apenas viva!".
Alien foi recriado e mostrado por inteiro. Aterrorizante nas primeiras exibições. Em "Romeu tem que morrer" (2000), com Jet Li, é possível ver ossos sendo quebrados, de forma extremamente realista.
Mas o susto passa. O que é familiar e corriqueiro não causa espanto. Como não causa mais espanto o indigente dormindo no chão, embaixo das marquizes nas ruas de nossas cidades...
Tão rápido quanto o susto que não é mais, é preciso produzir outros e outros filmes, com monstros mais e mais aterrorizantes, com violência mais e mais explícita.
Também as canções - ao menos aquelas com as quais a indústria cultural massacra os ouvidos da massa - parecem cada vez mais concretas: canções feitas pra pegar (em todos os sentidos)...
Hoje ninguém quer mais saber de histórias contadas ao redor da fogueira. Ninguém quer mais canções sobre luas enamoradas dormindo em um manto de estrelas.
"Um homem se humilha se castram seu sonho", cantava Gonzaguinha; "seu sonho é sua vida e a vida é trabalho". E concluia: "sem o seu trabalho o homem não tem honra, e sem a sua honra se morre, se mata...".
Querem embotar os sonhos, a nossa capacidade de criar, aquilo que nos faz ser humanos. Vamos deixar acontecer?

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Quem manda aqui sou eu!

O recente episódio da “quebra de braço” entre o então técnico do Santos, Dorival Junior, e o jogador Neymar é uma boa oportunidade para se conversar sobre temas importantes como poder e autoridade.

Poder e autoridade não são a mesma coisa, mas andam juntos. Poder é a capacidade – que alguém ou algum grupo possui – de levar outras pessoas a fazer o ele determina. Já autoridade vem da mesma raiz que gerou as palavras “autor” e “autoria”: a capacidade de falar em nome próprio ou em nome do grupo que ele representa.
O técnico é alguém que recebe da diretoria de um clube a autoridade para comandar uma equipe de jogadores. Cabe a ele determinar o que precisa ser feito, quem deve jogar e em que posição, para que o time alcance os objetivos traçados: a conquista de um campeonato, a classificação para um outro torneio ou não ser rebaixado.
A autoridade do técnico para comandar a equipe é legítima, ou seja, os jogadores aceitam que a voz de comando é do técnico seja porque é costume que todas as equipes sejam comandadas por técnicos (autoridade tradicional), seja porque tanto o técnico quanto os jogadores foram contratados pelo clube, cada um para exercer uma função diferente (autoridade legal).
Às vezes acontece de um técnico assumir uma posição de liderança por se destacar pela forma de agir e falar para estimular os jogadores. Um jogador pode ser enxergado pelo grupo como um líder desse tipo (autoridade carismática) porque joga muito bem ou, simplesmente, porque consegue articular bem os companheiros dentro de campo.
Autoridade tradicional, carismática e legal são conceitos elaborados pelo sociólogo Max Weber para explicar porque uma pessoa é vista e aceita como autoridade dentro de um grupo social.
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O episódio entre Neymar e Dorival Junior mostra que, na sociedade de hoje, a figura da autoridade está em crise. O ex-técnico Dorival Junior era a autoridade legítima para comandar o time. É provável que nem todas suas decisões tivessem sido acertadas, mas ele é quem respondia por elas. Neymar tem se destacado por sua qualidade como jogador mas fatos recentes têm mostrado que ele ainda não está pronto para assumir uma liderança carismática entre seus colegas.
Embora sua autoridade seja legítima, o técnico perdeu o poder sobre os jogadores, não tinha mais a capacidade de mobilizá-los em vista do objetivo do clube no Campeonato.
Ao privilegiar o jogador, a diretoria do Santos retirou do ex-técnico sua autoridade sobre os jogadores, embora estivesse fazendo um trabalho satisfatório; a diretoria também deixou claro para os futuros técnicos que a autoridade deles é frágil. Estatísticas mostram que no campeonato brasileiro desse ano foram 23 técnicos trocados no final das 16 primeiras rodadas (quase 1,5 por rodada).
Isso dá o que pensar: não só em termos de futebol, mas em termos de sociedade