segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Sem receitas

Não forneço receitas nem vendo GPS! É preciso que você aprenda a perceber, isto é, torne-se um cara curioso, de antenas ligadas.
Mas apesar de não fornecer receitas, queria sugerir algumas palavrinhas mágicas pra você guardar: estruturas, padrões, referências e relações. Ao estudar alguma coisa, qualquer coisa – e “perceber” a realidade é estudá-la –, você tem de estar atento a essas palavrinhas.
Vamos pegar a música como exemplo: uma série de sons, alguns mais graves e outros mais agudos, alguns mais rápidos e outros mais demorados, sons que tocam um depois do outro e sons que tocam ao mesmo tempo. Ou seja, música é o relacionamento intencional – não esqueça: intencional! – entre diversos sons. Se prestar mais atenção, vai perceber uma sequência de sons de velocidades diferentes que se repetem, como algo que pulsa: é o que chamamos de ritmo.
Música é relacionamento intencional dos sons. Essa é a estrutura dela. O ritmo, por sua vez, é um padrão de sons que é possível perceber dentro dessa estrutura. Melodia (sons em sequência) e harmonia (sons simultâneos) são também padrões.
Só que não existe um único ritmo. Tem samba, xaxado, xote e baião, rock pesado, hip-hop e reggae (do bom!). Se você quiser aprender os ritmos, tem de entender que o ritmo pode ser percebido como uma estrutura, com seus próprios padrões. Baião e valsa, por exemplo, são completamente diferentes: “1 e 2 e” (tum tata tum ta) no baião e “1 e 2 e 3 e” (tum ta ta) na valsa.
E isso não é só na música, não! Que tal pensar em Matemática? (credo em cruz, sai coisa ruim!). Sabia que a nossa percepção adora formar grupinhos? Verdade! Inconscientemente a gente fica separando o que vê a partir de características comuns: tem bastante gente de vermelho hoje e alguns estão de preto; aquela casa tem portas de alumínio e a outra tem portas de madeira, e por aí vai. Não é assim?
Puxa, isso fez eu me lembrar de uma coisa que aprendi lá nas primeiras séries: Conjunto! Eu tinha uma caixa de papelão pra guardar os brinquedos: 1 bola, 5 carrinhos, 1 espada de plástico, 1 guitarra de corda de elástico e até uns 10 gibis. 18 brinquedos. Tem algo que parece que não combina, não é? O que o gibi tá fazendo nessa soma? Bom, quando eu era criança me divertia com eles; acho que podia chamá-los de brinquedos também. Mas se a gente tirar os gibis, ficam 8 brinquedos.
Percebeu? Quantidade faz parte da estrutura da Matemática. Mas, importante, só posso somar ou subtrair quantidades de uma mesma coisa, de um mesmo conjunto: eu não podia somar gibi com brinquedo (na opinião de vocês); por isso eu subtrai os gibis do total de brinquedos (que pra mim eram a mesma coisa). Essa é a estrutura das operações matemáticas simples.
Aí minha mãe foi na papelaria e comprou seis caixas de lápis de cor, um pra cada irmão (tô exagerando, claro, porque meu irmão mais velho não precisava mais). Cada caixa de lápis de cor tinha 12 lápis. Eu abri todas as caixas e esparramei tudo no sofá: 12 lápis, depois outros 12, e outros 12 e mais 12 e, por fim, outros 12. 60 lápis. Percebeu o padrão? Eu somei cinco vezes a mesma quantidade: é a multiplicação.

Quando alguém está perdido na cidade, tem de olhar as placas, procurar os pontos turísticos e as vias principais. Não dá pra entender nada sem saber a que essa realidade se refere. A água ferve a 100 graus. Certo? Tem certeza? Errado! Falta a referência. Quando falo em 100 graus estou pensando em graus Celsius e estou pensando em uma determinada situação: se estiver tentando ferver a água ao nível do mar. Quando falo em baião estou pensando em música brasileira, provavelmente alguma canção composta no Nordeste brasileiro.
Em Matemática – só pra não deixar a coitadinha de lado! – tem uma história interessante, contada por Malba Tahan (pseudônimo árabe do brasileiro Júlio César de Mello e Souza) no livro “O homem que calculava”: como dividir 35 camelos entre três irmãos, se o pai determinou no testamento que o mais velho receberia metade, o do meio receberia um terço e o mais novo ficaria com a nona parte? Não dá pra dar meio camelo pra ninguém, porque o camelo morre e deixa de ser camelo. O problema é a referência: o conjunto dos números chamados inteiros não permite fazer essa divisão, pois se refere a coisas que não podem ser divididas. Mas eu posso dividir um bolo em pedaços, porque cada pedaço conserva as características principais do bolo inteiro (aí é um outro conjunto de números, os racionais ou fracionários).

Mas, para que serve conhecer a estrutura, perceber seus padrões e os pontos de referência dessa realidade? São informações que eu preciso relacionar com outras informações. Só assim se constrói o conhecimento.
Todo mundo já deve ter visto uma chaleira fervendo. O vapor da água escapa da chaleira com certa força, chegando a levantar um pouco a tampa da chaleira. Alguém teve a ideia de controlar a temperatura da água, de forma constante, e canalizar essa saída de vapor para fazer girar uma roda.
Outra pessoa já tinha usado rodas (com dentes) para transmitir o movimento de uma roda para outra. Rodas dentadas de tamanhos diferentes giram com velocidades diferentes. Como na bicicleta, desde a mais simples até aquela de marcha.
E foi assim, juntando um conhecimento daqui e outro de lá que nasceu a máquina a vapor (e tantas outras coisas). E a máquina a vapor, ligada a um tear, foi o começou da Revolução Industrial, que mudou irreversivelmente o mundo, mudou o jeito de produzir os produtos que as pessoas precisam para viver e a própria maneira como as pessoas se relacionam entre si.